quinta-feira, 29 de outubro de 2015

No olho do furacão

(...)Esperei até chegar em casa, de repente tinha se tornado questão de vida ou morte conseguir aquilo. De vida ou morte era exagero, mas de sanidade ou loucura não. Chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás.
(Caio Fernando Abreu)

Ao entrar no meu quarto, percebo que há uma bagunça bem maior do que de costume. Deito na cama, por cima de todas as roupas que joguei aqui. O teto não está como nas outras noites em que eu o encarava. Algo mudou e foi para pior. O caminho de volta pra casa foi o mais difícil que já peguei, embora seja o mesmo de sempre.  A sensação de estar presente e ausente enquanto dirigia por uma estrada bem familiar, mas que naquele momento era a mais estranha possível. As pessoas sem rostos, as ruas sem luzes e o meu corpo sem eu mesmo. Era essa a sensação. Parecia que caía um pedaço de mim por cada esquina, pois já não me reconhecia. Eu não saberia dizer quem era e a que estava indo. Eu me sentia fragmentado por algo que eu acreditava poder me consertar. As lágrimas que eu deixei cair e que fiz cair de outra pessoa pareciam ter levado uma boa parte de mim com elas. Eu, tentando agora reorganizar os meus pensamentos, percebo que há uma confusão bem maior do que havia. Talvez por isso não reconheço os retratos que eu vejo aqui, por isso o teto parece diferente embora nada o tenha acontecido, por isso essa bagunça que percebo ser a mesma, mas que parece maior. Tudo que eu ouço agora são silêncios e nesses silêncios reconheço vozes que não são de quem eu vejo na minha frente com os lábios em movimento – são vozes e palavras que já ouvi em outro momento e teimam em tomar lugar sem intenção de sair. São sons que fazem doer, como o som de gotas ininterruptamente caindo de uma torneira que não param a despeito de todo esforço. Ao olhar para os rostos que não vejo, vejo apenas rostos que ali não estão.
Afogo-me na confusão do meu quarto que parece imitar minha mente. Vejo no meio de tudo, peças de quebra-cabeças, brinquedos, armas, pessoas, animais, vozes e imagens desconexas. Não consigo encontrar as chaves de casa que acabei de guardar: estou todo assim, sem poder me encontrar na bagunça que eu mesmo criei. No espelho, não sei quem vejo, mas sei que está perdido e andando em círculos para se achar.
Nessa caminhada louca de volta para casa em todos os sentidos, não poderia levar ninguém. É arriscado demais. Não sei de que forma poderia amparar passageiros se nem mesmo consigo encontrar um chão onde pisar. Pode levar um tempo para encontrar o caminho certo e nesse meio tempo, prefiro percorrer sozinho. Vou andando a passos trôpegos... paro alguns instantes, pois há muitas coisas no meio do redemoinho e me causam vertigem. Sigo. E espero não causar mais danos aos outros, pois sempre que isso acontece, me perco mais ainda de mim. Não sou boa companhia no momento. Sigo, com os passos tortos e os pensamentos mais tortos ainda, em direção ao sentido de tudo.

(29/10/15)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Ser para compreender

Há certos momentos em que nós mesmo não nos entendemos. Precisamos nos afastar de tudo e todos e tentar assistir à cena de longe. Mas a vida é um quebra-cabeças complicado e nós somos peça sem a qual não há resolução. Então não podemos simplesmente nos afastar sem provocar algumas consequências e esse é o ponto mais doloroso de tudo isso.
Não adianta querer que outros entendam algo que se passa apenas em você, no seu ponto mais íntimo.  É inútil e angustiante. A sensação é de que você está vivendo uma ilusão, que você complica algo desnecessariamente, quando na verdade, tudo nunca foi tão real e necessário.
É difícil lidar quando outras coisas se fazem necessárias e você tem que se pôr em segundo plano, pois são as exigências da vida em sociedade.
Como no meio de uma história confusa, meio surrealista, meio tragédia grega, até meio clichê, é difícil prever o futuro quando você faz parte dele. Não sabemos que outros personagens surgirão nem quais serão as circunstâncias que se farão presentes.
Ser é um processo difícil e certas vezes frustrantes. Mas não há alternativa. Não ser é um estado imensuravelmente massacrante. Nosso dever, digamos assim, é ir sendo na esperança de haver um propósito, um fim, nem que seja lá no fim.

(28/10/15)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O tempo é que nos rege

Fazer-te algum mal é a última coisa que eu queria. Saiba também que você não me fez mal nenhum. Se você conseguir entender isso, me dou por satisfeito.
O que há de mais nessa história e de complicado é a vida. A vida é assim. Ela prega peças na gente e nós não temos como nos prevenir. Somos pegos de surpresa e geralmente é muito difícil de compreendermos. Mais difícil ainda é tentar fazer outro entender uma realidade que ele não vive. Eu sei bem como é isso.
Eu me pego pensando em tanta coisa. Não consigo escapar da culpa de ter que te fazer sentir mais uma dor para se somar às outras que já aí existem. Se eu pudesse voltar no tempo, ainda não sei bem o que faria, mas tudo seria a fim de evitar qualquer sofrimento a ti. Eu queria ter esse poder. O poder de evitar dor e sofrimento. Mas nós não temos.
Nós não temos muitos poderes que desejamos. Não temos o controle sobre tudo. E, diante do que aprendi, de que para tudo há um sentido e uma razão, me pergunto qual o sentido disso? Por que não podemos controlar tudo? Embora não tenha a resposta exata, posso pensar em muitas hipóteses e uma delas é que sem condições favoráveis e desfavoráveis no meio, não há seleção e, portanto, não há evolução. Você pode se perguntar o que evolução tem em comum com isso e a resposta é absolutamente tudo. Saindo do cientificismo, tudo que passamos na vida tem como objetivo promover mudanças e nos fazer evoluir. A nossa personalidade é um resultado de condições genéticas influenciadas por fatores extrínsecos, como o ambiente, a educação e as nossas experiências. São esses acontecimentos sobre os quais não temos controle que nos fazem quem somos. Sem eles, não somos, apenas existimos.
Se tudo acontece com esse intuito, isso que nos acontece também assim é. Devo acreditar. Quero acreditar.
Para tudo há um momento. O tempo é que nos rege. E, embora eu não consiga aceitar que esse era o momento para tudo isso, posso estar enganado. Talvez o bom momento não exista, mas existe o momento certo. Pode ser que danos sejam inevitáveis, mas possivelmente amenizados.
Eu acredito. Na vida e nos seus propósitos. É isso que me move.
Eu desejo apenas o melhor, nos momentos certos. Paciência e olhos atentos, para vermos a graça de cada coisa a seu tempo.
(27/10/15)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

De canto em canto

Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio (...)
Porque eu só canto só
E o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
(Cazuza)

Na maioria das vezes em que estou só, me ponho a cantar cantigas diversas – que variam de acordo com o estado de espírito - ou mesmo algumas melodias inventadas, sem letras ou significado aparente. Isso não significa que eu goste da minha voz, ou que eu acredite que canto bem. Muito pelo contrário – e é por isso que não me arrisco a nem abrir a boca perto de outras pessoas. O caso é que o faço porque encontro na música, como em poucas outras coisas, um lugar em que posso estabelecer uma conexão comigo mesmo, com meus sentimentos, com meu subconsciente e até arrisco em dizer que com outras pessoas. Assim como encontro um refúgio na escrita ou na leitura, encontro um lugar assim na música: na letra e na melodia de algumas canções. Às vezes não basta ouvir, tenho que me expressar através daquelas notas, daquelas palavras. E é impressionante como esse simples ato nos transporta para um lugar longínquo, mesmo sem sair do canto.
Como disse Cazuza, tem gente que canta procurando Deus e eu, como ele, sou assim: com a minha voz desafinada apenas quero me encontrar e gosto de estar só nesse momento tão importante. Assim como no escrever e no pensar. É como se fosse uma prece: tão pessoal, inabalável e urgente.
Nessas horas, apenas aproveito o encontro. Não faço perguntas, nem procuraria respondê-las. O canto em si é vasto e suficiente, é às vezes até demais para suportar. Há canções com as quais nos identificamos a ponto de causar até um certo susto. Há aquelas também que não compreendemos completamente, mas que de alguma forma nos toca. E há também aquelas que nos acerta de uma forma inesperada, como se compostas exatamente para nós. Algumas vezes pode ser doloroso, outras até bem revigorante.
Posso ser contraditório agora, mas algumas vezes é tão urgente a necessidade que até me aventuro em algumas notas perto de outras pessoas, mas sempre na esperança de que não me escutem. Arriscando parecer ridículo, não me abstenho dessa obrigação comigo mesmo.
Agora, ouvindo e cantando, tento me encontrar de diversas formas: nas notas musicais, nas letras que aqui ponho e em algumas imagens que perpassam pela minha mente. De qualquer forma, é válida a tentativa. São experiências que eu não deixaria de sentir por nada, nem mesmo por certos obstáculos que a sociedade e a correria da vida impõem.
                Não há nada mais importante do que estrar presente nesse encontro. Nem que para isso seja necessário cancelar alguns outros. Vale a pena cada segundo, nem que seja por quase um segundo. É necessário. É vital.


(05/10/2015)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

(Des)Construção

“I can barely breathe
When you're here loving me
Fire meet gasoline
I got all I need
When you came after me
Fire meet gasoline
Burn with me tonight”
(Sia)

Pode ser perigoso esse tempo que passamos juntos, pois não parece que somos mais os mesmos. Há algo de bem diferente em mim e não me refiro a qualquer coisa perceptível aos olhos, mas algo mais complicado. Eu também não sei dizer se é benéfico, só sei que é muito estranho perceber que não me conheço tão bem quanto eu pensava e ver que sou capaz de tantas coisas. Acredito que você tem certa culpa em algumas mudanças, outras já penso que apenas dependiam de mim e de uma força que não sei onde encontrei ou onde encontrar novamente. Apenas entenda que o que eu digo não significa que eu não goste do que há ou que não quero que aconteça novamente, apenas me entenda e veja como isso me assusta. Às vezes eu sinto como se houvesse granadas ao meu redor apenas à espera de um momento - a explosão – e o que mais me assusta nisso tudo é essa vontade de correr até elas, de dispará-las todas, como se essa explosão fosse de certa forma necessária. E talvez seja. Talvez precisamos perder tudo aquilo em que acreditamos estar seguros para encontrar nossa própria fortaleza e, nesse mesmo sentido, perder o que somos para então nos encontrarmos de fato. Um disparo. Destruição. O encontro. Não é um simples espalhar de destroços, é algo que leva tempo e nunca para. Apenas esteja aqui, me ajude a juntar as peças e vamos nos construindo.

(28/09/15)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cais do porto

Hoje eu percebi que minhas âncoras não estão assim tão seguras como eu sempre achei que estivessem. Me apoio no que eu acreditava ser uma fortaleza própria, algo que eu mesmo havia criado. Percebi que as estruturas de um ser humano são, na verdade, mais frágeis do que se pode imaginar.
Às vezes ocorrem maremotos e tempestades que me fazem querer me livrar dessas âncoras e, como esse mar que me rodeia, transbordar. Às vezes, todo esse caos surge como algo que implode de mim e não de uma força externa, como era de se esperar. Fico me sentindo estranho, pois acho que os outros têm portos muito mais seguros.
Muitas vezes, o que eu acabo fazendo é me entregar ao silêncio de um mar calmo, que não é deveras calmo e se aproxima mais de uma maré noturna em lua cheia. É aquele silêncio que te arrasta para dentro de si enquanto observas o horizonte tornando-se distante.
Marinheiros que tentam navegar, tomem cuidado com as trapaças do mar. Estas são águas salgadas de suor e lágrimas de quem as navega.
Hoje percebi que todas essas âncoras são, na verdade, inúteis se não há algo em que possam se sustentar e apenas o solo que criei, por não ser tão firme, não é suficiente.
Quando você esteve aqui e fitou demoradamente essa água que nem é tão cristalina, observando seu rosto balançar às ondas desse mar, pude ver uns olhos densos. São olhos densos daqueles que fazem parar a correnteza por alguns segundos, que silenciam o caos por um momento. São castanhos e sólidos, como terra firme para se ancorar. Tive vontade de falar muitas coisas, mas poderia fazer desabar as estruturas de um cais de porto assim tão seguro. Eu poderia assim produzir um tsunami que te engoliria e te faria se perder nas minhas confusões. Preferi então manter o silêncio de uma maré alta, que sussurra palavras fortes, mas que não perturba. Permiti-me ancorar no teu porto.
Se mar, marinheiro ou embarcação, não estou certo de quem verdadeiramente sou. Mas sei que estou seguro nas minhas próprias instabilidades. E nas tuas.

(14/09/15)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Apenas desencontros casuais

É bem possível que você nem saiba meu nome, muito menos outras coisas sobre mim. Sou aquele completo estranho que a gente vê de vez em quando. Eu, no entanto, já sei muito da tua rotina, sei bem os teus traços – caso precise descrevê-los, sou a pessoa mais indicada. O teu nome, não foi bem a primeira coisa que eu soube sobre você, aliás, veio muito depois das primeiras palavras trocadas e muitas unhas roídas de curiosidade querendo saber tudo sobre quem vi algumas vezes. Antes disso eu já soube: queria saber muito mais. Espero ter passado despercebida todas as vezes que vigiava a tua janela antes mesmo da minha ao chegar em casa, ou quando olhava para os vários lados na esperança de te ver ali no meio do caminho, trocar um “bom dia” casual enquanto meu coração triplicava o movimento de suas baquetas. Eu realmente não consigo entender, e não espero que os outros entendam, como alguém que mal conhecemos pode causar tão dramático efeito em como vivemos. Posso parecer apenas mais um rosto no mosaico dos tantos que você vê por aí, mas para mim o seu representa mais do que qualquer um, sem nem mesmo ter motivo especial para tal. A tua figura, sem particularidades, é singular. Enquanto, pra você, meu nome é Estranha, eu já te dei muitos nomes além daquele que você conhece. São nomes que eu chamo quando estou só, imaginando que estás bem ali a alguns passos de mim. Sem saber bem ao certo os detalhes da tua vida, conheço os horários em que posso ouvir tua voz ao longe conversando com seus amigos enquanto sai de casa para o trabalho ou algo do tipo. Sei quando posso, propositalmente fazer a coincidência de te encontrar chegando em casa ao mesmo tempo que eu, parecendo surpresa por te encontrar ali, dizendo “boa tarde” mas querendo saber como vai, por onde tem andado e quais seus mais íntimos pensamentos agora, mas ao mesmo tempo suando, querendo correr e ficar. Não sei se você me acha uma pessoa de poucas palavras, pois tudo que falamos um pro outro são saudações convencionais, mas a verdade é que eu tenho todo um texto em mente que eu construo nas horas em que deveria estar pensando em qualquer outra coisa, mas as palavras se perdem antes mesmo de surgirem. Eu pouco sei da tua personalidade – além daquela que criei pra você, é claro – mas imagino que não conheço uma das melhores pessoas que poderia conhecer. São poucos, e você aí está, aqueles cuja ausência me perturba. Fico imaginando mil coisas quando te vejo e outras milhões quando você some. Quando você aparece novamente, toda essa ansiedade vai e dá lugar a outra, velha conhecida, querendo e não querendo te ver. Torço pra que você esteja no meu caminho e rezo para que nem te veja quando acho que não estou apresentável.  Quando você sai ou chega fico querendo saber quais são seus descaminhos e querendo me perder neles com você. O tempo que deveria dedicar às outras mil coisas que estavam na minha vida antes de você é, hoje, todo seu. As palavras que deveria estar agora dizendo a você, enquanto nos encontramos casualmente como nas outras muitas vezes, depois do oi e do sorriso tímido, estou derramando agora sobre esse papel. E esse papel, que eu poderia te entregar em mãos na mais remota possibilidade, é mais provável de acabar amassado na lixeira. As nossas conversas que já aconteceram tanto na minha cabeça, talvez nem aconteçam. Enquanto a coragem se perde no meio do caminho, vou tentando encontrá-la mesmo assim e espero que nesse meio tempo possa te encontrar muitas outras vezes.

(15/04/15)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Imediatamente aqui

“E eis que depois de uma tarde de quem sou eu e de acordar à uma da madrugada ainda em desespero – eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. 
Simplesmente eu sou eu. E você é você. É lindo, é vasto, vai durar.”
(Clarice Lispector)

Devo me apressar para o que me proponho a fazer. E isto é derramar-me líquido em tinta sobre o papel. Percebi que ao tentar ser terceira pessoa ou primeira do plural não estava sendo nem de pouco o que deveria ser a minha primeira do singular. Falar a ou sobre outros, mesmo que contido na massa de estranhos, é fundamentalmente diverso de falar de si ou para si. O máximo de honestidade que se põe não pode nem de longe assegurar que é pura verdade aquilo que se diz quando um assume a posição de porta voz ao público. Falar de si, até mesmo, pode ser passível de arrodeios e tangentes, para não chegar ao inconveniente da verdade em suma. Assim tendo percebido e, querendo apenas livrar-me de um redemoinho que vez por outra povoa a mente dos mais inquietos interiormente, fiz, de meta para o já, o pôr em palavras a bagunça de coisas e poeira que passa levando mais e mais consigo.
Diz-se que, quando algo nos perpassa a imaginação ou a consciência, devemos nos agarrar à coisa com as todas garras que surgirem e, igualmente veloz, devemos agarrar a pena, prendendo na folha a tal coisa que é escorregadia e pode fugir a qualquer momento. Por isso digo que devo me apressar, pois a coisa já passou o dia quase inteiro indo e vindo, como de brincadeira. Mas confesso que tenho certos receios e adio por quanto possível for a prisão (soltura, na verdade) do pensamento. Vou adiando como posso, não por muito tempo pois é impossível, mas alimentando aquilo com as experiências do dia. E no momento me pergunto como poderia fugir esse pensamento e não se mostrar novamente se é em essência parte do eu e do que sou? É por isso que, mesmo com a pena à mão, vou traçando e tecendo palavras que nem tanto tem a ver com o objetivo em si.
O que acontece é.
Eu posso estar enganado e é disso que tenho medo. Posso estar enganado sobre tudo que tem acontecido até então e sobre como devo prosseguir. Pode ter havido um equívoco e o presente não deveria ser como é e dessa forma compromete o futuro. São muitas as possibilidades de como tudo poderia ou poderá ser, sobre os erros e acertos. Mas há algo que não me traz esse sentimento de ignorância e é sobre isso que tenho pensado. Tenho pensado sobre mim, mais precisamente sobre o que isso significa. E, embora o processo de descoberta seja algo constante e sempre em progresso, não posso deixar de perceber que o que somos, em nosso íntimo, é algo que só pertence a nós e está presente desde sempre – assim independe de nosso questionamento de como agir, pois na verdade o guia. O nosso ser, em si, é algo que vamos descobrindo cada vez mais, de pouco em pouco, mas sempre tendo a certeza de sua legitimidade, mesmo que em algum momento tentemos pôr sob dúvida. As nossas primeiras pessoas nos intrigam se lhes dispensamos muita atenção e nos solucionam quando nem estamos vendo, esses grandes enigmas que somos.
Eu agora devo ser rápido não porque essas linhas possam me sumir da mente, mas porque tudo acontece mais rápido do que imaginamos e, enquanto falo sobre devaneios e palavras e pensamentos, as vozes de quem ouvimos tanto esses dias vão tomando lugares maiores. Me pego escrevendo algo, enquanto me sussurram alguma música que me agrada e falam sobre alguém que admiro. Ouço o que agora há pouco ouvia, enquanto adiava esse processo. Serei claro: ouço Bethânia cantando “É o amor” ou “Sensível demais” ou outras tantas. Houve muita Bethânia ultimamente por aqui e, mais recentemente, a ouço recitar “E eis” de Clarice. E eis que estou aqui, imediatamente depois.

(06/04/2015)

segunda-feira, 30 de março de 2015

O rumo entre o querer e o fazer

Eu queria encontrar o caminho que leva para aquilo que a gente busca. E aquilo consegue ser uma palavra tão genérica a ponto de satisfazer em cheio, como só ela mesma poderia, a figura de um mundão de coisas que a gente quer. Uns querem pouquinho. Há os que querem um pouquinho disso aqui e daquilo lá. Outros querem tanto mais do que podem abarcar – e vão acabar percebendo, cedo ou tarde. Eu queria encontrar o caminho pra tudo isso e que fôssemos todos na busca “do aquilo”. Mas a verdade é que por mais que desejemos com toda nossa vontade achar o caminho – como se fosse algo que sempre esteve nas nossas mãos e eventualmente o deixamos cair por aí, por mais que isso seja nossa ideia da coisa e o alvo de todo nosso empenho, assim não será. Assim simplesmente. Pois os caminhos são coisas que devemos construir, como fez a humanidade durante boa parte da sua história: abrindo veredas na mata fechada, seguindo persistente no vazio do deserto e fazendo possível o impossível de atravessar os mares e os ares. Assim devemos fazer. E o que é essa fé na sorte e no milagre do nada fazer deve ser agora fé motriz de encontrar aquilo que não se perdeu, assim sendo, criando o que ainda não temos e abrindo as estradas no sentido que a vida deve seguir.

(30/03/2015)

sábado, 14 de março de 2015

Acima de tudo, viva

No dia nacional da poesia, me deparo com um dos mais belos poemas que já li, recitado por uma das maiores atrizes de todos os tempos. Que mais belo presente poderíamos receber?

"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar."
Antonio Cícero - Guardar


Ainda assim, me aventurei em tentar rabiscar algo para esse dia. Nada pretensioso, apenas um agrado poético:

Acima de tudo, viva
A poesia está em tudo que vemos. E, sobretudo, no que não conseguimos ver. A poesia vive em cada um e em cada coisa e é preciso senti-la para, então, entender. É onipresente. Está no sorriso da menina que acaba de ganhar um presente, no beijo daquele casal apaixonado, na euforia daquele que venceu a partida de futebol, nas lágrimas da mãe ao ver seu rebento pela primeira vez e no choro sem lágrima desse pequeno que sente o primeiro sopro. Está na brisa que sopra calmamente os cabelos de quem passeia no jardim, no som das ondas do mar chegando aos ouvidos de quem contempla o pôr-do-sol. Está nos primeiros raios da manhã e no orvalho da noite. A poesia está em cada canto. Na dor de quem se despede, nas lágrimas de quem perde alguém, nos insultos que varrem a angústia de duas vidas. Está no último suspiro de quem já viveu muita poesia. Está nas primeiras palavras de quem ainda muito vai viver. Está nos tropeços dos passos cansados e na graça dos primeiros tropeços. Está na boa notícia, no pedido de casamento, nas mudanças de vida, nos ensinamentos. Está no pó de giz que habita a sala de aula e está no que se aprendeu fora dela. Está em cada tijolo colado com cimento e suor. Está na plantação e na colheita. Está no acre da seca e na gratidão por cada gotinha de chuva. Está na poça de lama que se forma de manhã, nos pés sujos dessa mesma lama e na água que os lava. Está nas folhas que caem de tempos em tempos, nos frutos que se preparam pra surgir e alimentar os famintos. Está nas flores, em cada pétala e em cada grão de pólen. Está nas pedras que desafiam o rio e na água que faz seu destino. Está nos caminhos que muitos já percorreram e nas veredas que uns inventam. Está na tinta que molha a pena e nos segredos que ali se libertam. A poesia está em tantos lugares inimagináveis e que nem conhecemos ainda. Está na própria vida e é preciso vivê-la. É tudo e ao mesmo tempo o nada. A poesia... está principalmente no silêncio das palavras.

(14 de Março de 2015, Dia Nacional da Poesia)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Nós somos o que não sabemos

Você sou eu e eu sou tudo isso que não sei dizer. E você sabe bem o que eu quero dizer, pois foi tu quem mais viste o nada que digo quando tento falar. Você é testemunha das inúmeras e fatídicas tentativas de pôr em palavras. Você sabe. Você sou eu e esse medo todo que você tem, de se perder em mim e não se ver nos outros, é o mesmo medo que eu tenho. É algo que sempre senti e piorou depois de ti. É verdade que eu continuo falando de ti como algo ruim que me aconteceu, mas a verdade mesmo é que, para bem ou mal, você me aconteceu. E não foi você, nem o mundo, mas eu mesmo que percebi tudo isso sobre mim e acima de tudo, que preciso me conhecer melhor. Você me aconteceu e me viu assim, um pouco simples quando visto de longe. Mas você se aproximou e percebeu, talvez antes de mim, a confusão que eu sou e, apesar de muito trabalho, ainda não consegui entender essa bagunça. Ainda há peças fora do lugar, há coisas faltando, outras que nem sei pra que servem. Estou assim, como me viste um dia e me vês ainda hoje. Já conversamos muito. Na verdade, tu falavas e eu só ouvia, como de costume. Enquanto você discorria sobre seja lá o que tenha sido, eu estava ali mas em outro lugar. Eu te ouvia, mas o que eu realmente ouvia era a minha voz e não entendia bem o que eu dizia: eram muitas perguntas, poucas respostas, alguns sussurros, assobios, músicas, cenas... O que acontecia realmente enquanto tu falavas e eu fingia que ouvia era eu tentando entender. A mim, a ti, a nós, ao mundo. Não te aborreças. É, eu sei: no fundo você sempre soube que eu estava mais pra lá do que pra cá, pra tuas histórias. Não que elas não fossem interessantes, nem que você não fosse importante para eu parar minha cabeça um minuto e apenas te ouvir. Mas era mais forte do que eu. É mais forte do que nós mesmos, você sabe. E no fim, de que adiantou? Pois continuo sem respostas, com novas perguntas e agora, sem você. Você acha que eu tentei mudar por você ou que fiz você mudar por mim. Você acha que eu queria demais, eu sei. Mas preciso te dizer que não. Eu não tentei mudar por você nem nunca quis que você mudasse. Na verdade, não houve mudança nenhuma, eu nunca quis. Eu nunca quis demais, só quis o que é nosso. Se eu mudei, foi de algo que não era eu para algo que ainda não sou eu mas quer que eu viva. Você sabe, pois você sou eu e eu sou você e todas essas perguntas sem repostas. Você sou eu e nós somos o que sempre fomos, mas nem sempre deixamos ser. Eu aqui, você lá, mas de qualquer forma, sendo. Eu me ouvindo, tentando ouvir as repostas.

(09/03/2015)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Como se fosse ontem

Lembro muito de você. Não como eu gostaria de lembrar: às vezes tenho que me esforçar para formar um esboço do seu rosto; a sua voz sofreu alguma distorção nesses últimos tempos e não lembro exatamente sua altura. Lembro dos seus óculos – na verdade, lembro que você os usava, mas não tenho certeza de como era o modelo. Sei que caía muito bem no seu rosto que pra mim, hoje, é um pouco borrado. Tenho certeza que mudaste nesses anos e, por isso, fica mais difícil ainda formar um modelo seu para recordar. Agora na vida adulta, será que mudaste muito mesmo? Há tanto tempo não te vejo. Lembro – mal, mas lembro, que conversávamos muito e, embora eu não consiga mais reproduzir mentalmente a tua risada, sei que adorava ouvi-la: era pura espontaneidade, uma risada torta, engraçada e adorável (acho que só eu achava adorável) e não combinava nada contigo, mas pra mim, não havia melhor. Nos corredores da minha memória, o teu retrato encontra-se repetido em vários locais, são retratos distintos e, apesar de não serem merecedores de muitos elogios, foram feitos à mão, com pouca técnica e muito bem-querer. Não lembro da tua forma, do teu rosto, da tua voz. Mas lembro perfeitamente de como me alegrava em te ver, mesmo de longe, e ao perceber que também se alegrava ao me ver, com um sorriso se formando nos teus lábios, enquanto que o meu já nem cabia mais no rosto. Às vezes me fazia de indiferente, confesso, mas é porque eu tinha essa coisa de querer me proteger dos outros. Sei que você não me entende, pois nem eu bem me entendo, muitas vezes. Lembro com precisão do arrepio que eu sentia quando a distância já não era tão grande, com o toque da tua pele (que já nem sei como era) na minha. Lembro de rir à beça com as tuas piadas e até com a sua conversa séria. Lembro que falávamos sobre tudo, tudo mesmo e era tão simples. Eu particularmente adorava te aborrecer rindo da sua cara. Lembro o quanto eu odiava me despedir de você, mesmo que fosse com um “até amanhã”, mas nunca te disse isso. Lembro de fazer muitos planos para o dia seguinte e não realizar nenhum. Lembro das vezes que, depois de um tempo, mal nos falávamos, sem motivo algum, apenas uma distância que se criou. E nessas vezes, lembro do breve oi que te dirigia com a intenção de dizer muito mais, mas que nunca passou disso. E aí, os meus sorrisos já nem tinham tanto a ver contigo, pois você não estava sempre lá. E quando eu te via de longe, eu já nem sorria, só pensava no pouco tempo que é necessário para separar as pessoas, e via que você sorria mas isso nada tinha a ver comigo. As raras vezes em que conversávamos como antes, não eram na verdade como antes, mas serviam pra manter aquela chama acesa (que se enfraquecia na maior parte do tempo). Nesse tempo todo conversamos sobre tanta coisa, ouvi muito e falei tanto, mas não te disse nada do que eu realmente queria dizer. Talvez fosse melhor assim. Até as redes sociais, da internet, que costumávamos usar e era o que nos salvava, sumiram. Quando o cenário que dividíamos se desfez, lembro que nem houve despedida. A última vez que conversamos, já depois disso, foi tão rápida e nem lembro bem o que falamos, nem a tua reação. Também não houve despedida. Depois disso, já te vi outras vezes, de longe e, a contragosto, fingi que não vi. Desviei. Minha vontade era de te falar todo aquele não dito, que à época já era maior e hoje muito mais. Eu queria ouvir novamente a tua voz, sentir a textura da sua pele, ver as mudanças no seu rosto e, com sorte, testemunhar aquela sua risada estranhamente perfeita. Eu queria te contar tudo que eu vivi desde então e queria também ouvir o que aconteceu na sua vida e todos os detalhes possíveis. Eu queria mesmo era te dizer tudo isso que eu estou dizendo, achando que é pra você, mas que talvez você nunca leia. O que eu realmente queria te dizer, além disso tudo, é que depois de você, conheci muita gente e já há outros novos retratos na parede, mas eu nunca me esqueci de você. Como eu já disse: eu me lembro de você, não como eu gostaria, mas de um jeito muito melhor.

(04/03/2015)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Prece

Que seja sentido: os sentidos e o imaginável. Que seja livre o sentir e que estejamos prontos a ele, ou não. Que nos acerte em cheio, no alvo, certeiro e que o impacto seja suficiente pra se fazer sentir. Que sejamos pegos de surpresa, mesmo quando não. Por mais doloroso, que não seja esquecido: que deixe cicatriz, marcas daquelas vivas, que doem, que são sentidas e se fazem lembrar dia após dia. Que nos salve do infortúnio de, um dia, nos tomarem os dias. Que venha o dia com suas promessas e que vá a noite com as nossas. Que vivam as noites e seus sonhos, e os dias com suas ilusões. Não permita ao feito ser desfeito e ao dito, desdito. Sejam pronunciadas as verdades e as mentiras e marcadas pela dor que trazem, cada uma a sua. Que seja sentida a vida e tudo mais que for possível, além do vivo. Que seja livre.

Escrito em 22/09/2014. Transcrito modificado em 24/02/2015.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Confissões de um leitor nº2

Confissões de um leitor nº2 – Sobre Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu é um daqueles a quem só se pode amar ou odiar.
Não recordo o momento exato em que fui apresentado à sua obra, mas lembro bem de vários episódios em que ela se fez presente. Ele tem esse poder de marcar as pessoas com as suas palavras, mesmo que já passados tantos anos. Pelo menos a mim há esse efeito.
Lembro bem de ter lido, visto, ouvido Caio por muito tempo e era sempre um espanto. É assombroso quando encontramos um desconhecido que nos conhece tão bem. Mesmo sem ter vivido ou sentido o que se lê ou escreve, há sempre uma espécie de outro "eu" que sobrevive em nós e que de tempos em tempos se faz notar. Uma espécie de ser totalmente diferente, mas às vezes apenas o nosso puro e simples ser. A verdade é que esse elemento desconhecido costuma saltar e gritar quando Caio fala no silêncio do papel lido. Nem sempre é por conhecimento de causa, mas ele consegue se despir de forma tão íntima em palavras e nos mostra tanto, que é quase impossível não se identificar com essa nudez.
Antes de Caio, houve Clarice. Para mim e para ele. Vimos Clarice se desnudar de suas cobertas e de si mesma em tanta coisa escrita e dita. É rara tamanha coragem. Clarice, com sua arte de ser completamente muitas e ela mesma, contagia de repente tanta gente. Caio, acredito, foi um desses.
São muitas coisas que me vêm à cabeça agora. Mas uma em particular, que ouvi da boca de desconhecido que falava as palavras de Caio para uma plateia de assustados. Assustados e admirados com as profundezas do que era dito. Era simples e complexo. Mas não importava, porque era acima de tudo, sincero e genuíno. Era um conto, uma prosa poética, como só Caio sabe fazer. Chamava-se “Para uma avenca partindo” e, como a figura que era representada no texto, essas linhas ocuparam e se instalaram em minha mente por dias. Já se passaram alguns anos e elas me incomodam (de uma forma agradável) até hoje.

(23/02/15)

Segue o conto de CFA supracitado. Vale a pena cada linha.

"Para uma avenca partindo" - Caio Fernando Abreu


“Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.”

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A arte da fuga

Eu diria que evitar é a maior especialidade da espécie humana. Eu, por exemplo, pus a caneta à mão com a intenção de falar sobre algo muito íntimo, mas rapidamente mudei de ideia e já queria discorrer sobre algo polêmico. Agora, vejam: já estou sendo redundante e metalinguístico.
Evitamos, acima de tudo, qualquer tipo de sofrimento. É vital, instintivo. Qualquer ameaça de dor nos amedronta, mesmo que não estejamos plenamente conscientes disso. Situações desconfortáveis, constrangedoras, que necessitem de mínimo esforço ou doação: evita-se. Evitamos a exposição. Mesmo os mais extrovertidos (eu diria que principalmente estes). A possibilidade de parecermos vulneráveis é aterrorizante: portanto, nos escondemos.
O mais curioso, no entanto, é que evitamos inclusive a felicidade.
E aí passamos horas, dias, meses, anos tentando entender o porquê de tanto receio, por que chegamos ao passo de criar os obstáculos que transpõem a nossa própria jornada. O medo, e a angústia, o arrependimento do não feito. Tudo ali presente e que contribui de forma silenciosamente gritante pra toda essa confusão. Ficamos presos nas nossas mentes.
Não conseguimos perceber que os prêmios, as metas, estão sempre atrás de muitos muros que precisam ser quebrados, muitas portas e janelas que precisam ser abertas; passos a serem dados; muitos silêncios que hão de ser desfeitos e outras tantas palavras que precisam ser contidas. Em meio à corrida, é preciso despir-se de muitas cobertas. É preciso se expor e tornar-se vulnerável ao que nos for apresentado. É bem provável que faça-se presente na boca o gosto da dor, que se conheça frente a frente diversos tipos de sofrimento. Há sempre um preço a pagar.
É mister se permitir, por vezes, esquecer dos outros. Outras, é mais prudente esquecer de si e doar.
Está tudo à nossa frente. São vários receios que se cruzam e conhecemos bem. Mas não percebemos que tanta fuga, essas que cremos piamente nos fortalecer, nos impede, na verdade, de viver verdadeiramente. E nos enfraquece por dentro. Tornamo-nos instáveis.
Andamos incansavelmente em busca de um final que imaginamos e, ao nos deparar com as pedras, mudamos o rumo. Prosseguimos no erro. E chegamos a lugar nenhum, embora nem sempre esteja isso claro.
Devemos ser mais vitais e evitar menos.


(22/02/15)