Confissões
de um leitor nº2 – Sobre Caio Fernando Abreu
Caio Fernando Abreu é um daqueles a quem só se pode
amar ou odiar.
Não recordo o momento exato em que fui apresentado
à sua obra, mas lembro bem de vários episódios em que ela se fez presente. Ele
tem esse poder de marcar as pessoas com as suas palavras, mesmo que já passados
tantos anos. Pelo menos a mim há esse efeito.
Lembro bem de ter lido, visto, ouvido Caio por
muito tempo e era sempre um espanto. É assombroso quando encontramos um desconhecido
que nos conhece tão bem. Mesmo sem ter vivido ou sentido o que se lê ou
escreve, há sempre uma espécie de outro "eu" que sobrevive em nós e
que de tempos em tempos se faz notar. Uma espécie de ser totalmente diferente,
mas às vezes apenas o nosso puro e simples ser. A verdade é que esse elemento
desconhecido costuma saltar e gritar quando Caio fala no silêncio do papel
lido. Nem sempre é por conhecimento de causa, mas ele consegue se despir de
forma tão íntima em palavras e nos mostra tanto, que é quase impossível não se
identificar com essa nudez.
Antes de Caio, houve Clarice. Para mim e para ele.
Vimos Clarice se desnudar de suas cobertas e de si mesma em tanta coisa escrita
e dita. É rara tamanha coragem. Clarice, com sua arte de ser completamente
muitas e ela mesma, contagia de repente tanta gente. Caio, acredito, foi um
desses.
São muitas coisas que me vêm à cabeça agora. Mas
uma em particular, que ouvi da boca de desconhecido que falava as palavras de
Caio para uma plateia de assustados. Assustados e admirados com as profundezas
do que era dito. Era simples e complexo. Mas não importava, porque era acima de
tudo, sincero e genuíno. Era um conto, uma prosa poética, como só Caio sabe
fazer. Chamava-se “Para uma avenca partindo” e, como a figura que era
representada no texto, essas linhas ocuparam e se instalaram em minha mente por
dias. Já se passaram alguns anos e elas me incomodam (de uma forma agradável)
até hoje.
(23/02/15)
Segue o conto de CFA supracitado. Vale a pena cada linha.
"Para
uma avenca partindo" - Caio Fernando Abreu
“Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção
de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente,
sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas,
porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende?
Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga
nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas
coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos
satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas
completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é
permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão
permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a
gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver,
no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio?
Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros
com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra
maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa,
realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente
talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a
dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar
propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma
outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu
dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando
a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela
janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas
coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito
dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a
nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as
superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu
dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia
conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha
razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que
enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar
rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora
sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa
coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não
ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso,
deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito
completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu
plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca,
talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não,
esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em
nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e
depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o
telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a
mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de
muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom
ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando
coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por
favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser
possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada,
é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim,
esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você
sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você
ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos,
mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de
noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma
questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes
em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu
não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era
capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em
relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo,
disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto
você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você,
eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu
sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas
coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem
suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não
mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para
que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não,
ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei
que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha
mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava
dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o
fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me
aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se
você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não
aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava
quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de
lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria
chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri
existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você
partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de
todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor,
olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada,
sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma
importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não
fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim,
eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por
metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa
preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero
aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando
enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante,
vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ .............
............ .......... ........... ............. ............ ............
............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu
vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está
esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te
dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela,
está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois
você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar
você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua,
por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não
passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita
concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes
de você ir embora eu quero te dizer quê.”