terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Prece

Que seja sentido: os sentidos e o imaginável. Que seja livre o sentir e que estejamos prontos a ele, ou não. Que nos acerte em cheio, no alvo, certeiro e que o impacto seja suficiente pra se fazer sentir. Que sejamos pegos de surpresa, mesmo quando não. Por mais doloroso, que não seja esquecido: que deixe cicatriz, marcas daquelas vivas, que doem, que são sentidas e se fazem lembrar dia após dia. Que nos salve do infortúnio de, um dia, nos tomarem os dias. Que venha o dia com suas promessas e que vá a noite com as nossas. Que vivam as noites e seus sonhos, e os dias com suas ilusões. Não permita ao feito ser desfeito e ao dito, desdito. Sejam pronunciadas as verdades e as mentiras e marcadas pela dor que trazem, cada uma a sua. Que seja sentida a vida e tudo mais que for possível, além do vivo. Que seja livre.

Escrito em 22/09/2014. Transcrito modificado em 24/02/2015.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Confissões de um leitor nº2

Confissões de um leitor nº2 – Sobre Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu é um daqueles a quem só se pode amar ou odiar.
Não recordo o momento exato em que fui apresentado à sua obra, mas lembro bem de vários episódios em que ela se fez presente. Ele tem esse poder de marcar as pessoas com as suas palavras, mesmo que já passados tantos anos. Pelo menos a mim há esse efeito.
Lembro bem de ter lido, visto, ouvido Caio por muito tempo e era sempre um espanto. É assombroso quando encontramos um desconhecido que nos conhece tão bem. Mesmo sem ter vivido ou sentido o que se lê ou escreve, há sempre uma espécie de outro "eu" que sobrevive em nós e que de tempos em tempos se faz notar. Uma espécie de ser totalmente diferente, mas às vezes apenas o nosso puro e simples ser. A verdade é que esse elemento desconhecido costuma saltar e gritar quando Caio fala no silêncio do papel lido. Nem sempre é por conhecimento de causa, mas ele consegue se despir de forma tão íntima em palavras e nos mostra tanto, que é quase impossível não se identificar com essa nudez.
Antes de Caio, houve Clarice. Para mim e para ele. Vimos Clarice se desnudar de suas cobertas e de si mesma em tanta coisa escrita e dita. É rara tamanha coragem. Clarice, com sua arte de ser completamente muitas e ela mesma, contagia de repente tanta gente. Caio, acredito, foi um desses.
São muitas coisas que me vêm à cabeça agora. Mas uma em particular, que ouvi da boca de desconhecido que falava as palavras de Caio para uma plateia de assustados. Assustados e admirados com as profundezas do que era dito. Era simples e complexo. Mas não importava, porque era acima de tudo, sincero e genuíno. Era um conto, uma prosa poética, como só Caio sabe fazer. Chamava-se “Para uma avenca partindo” e, como a figura que era representada no texto, essas linhas ocuparam e se instalaram em minha mente por dias. Já se passaram alguns anos e elas me incomodam (de uma forma agradável) até hoje.

(23/02/15)

Segue o conto de CFA supracitado. Vale a pena cada linha.

"Para uma avenca partindo" - Caio Fernando Abreu


“Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.”

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A arte da fuga

Eu diria que evitar é a maior especialidade da espécie humana. Eu, por exemplo, pus a caneta à mão com a intenção de falar sobre algo muito íntimo, mas rapidamente mudei de ideia e já queria discorrer sobre algo polêmico. Agora, vejam: já estou sendo redundante e metalinguístico.
Evitamos, acima de tudo, qualquer tipo de sofrimento. É vital, instintivo. Qualquer ameaça de dor nos amedronta, mesmo que não estejamos plenamente conscientes disso. Situações desconfortáveis, constrangedoras, que necessitem de mínimo esforço ou doação: evita-se. Evitamos a exposição. Mesmo os mais extrovertidos (eu diria que principalmente estes). A possibilidade de parecermos vulneráveis é aterrorizante: portanto, nos escondemos.
O mais curioso, no entanto, é que evitamos inclusive a felicidade.
E aí passamos horas, dias, meses, anos tentando entender o porquê de tanto receio, por que chegamos ao passo de criar os obstáculos que transpõem a nossa própria jornada. O medo, e a angústia, o arrependimento do não feito. Tudo ali presente e que contribui de forma silenciosamente gritante pra toda essa confusão. Ficamos presos nas nossas mentes.
Não conseguimos perceber que os prêmios, as metas, estão sempre atrás de muitos muros que precisam ser quebrados, muitas portas e janelas que precisam ser abertas; passos a serem dados; muitos silêncios que hão de ser desfeitos e outras tantas palavras que precisam ser contidas. Em meio à corrida, é preciso despir-se de muitas cobertas. É preciso se expor e tornar-se vulnerável ao que nos for apresentado. É bem provável que faça-se presente na boca o gosto da dor, que se conheça frente a frente diversos tipos de sofrimento. Há sempre um preço a pagar.
É mister se permitir, por vezes, esquecer dos outros. Outras, é mais prudente esquecer de si e doar.
Está tudo à nossa frente. São vários receios que se cruzam e conhecemos bem. Mas não percebemos que tanta fuga, essas que cremos piamente nos fortalecer, nos impede, na verdade, de viver verdadeiramente. E nos enfraquece por dentro. Tornamo-nos instáveis.
Andamos incansavelmente em busca de um final que imaginamos e, ao nos deparar com as pedras, mudamos o rumo. Prosseguimos no erro. E chegamos a lugar nenhum, embora nem sempre esteja isso claro.
Devemos ser mais vitais e evitar menos.


(22/02/15)