“E eis que depois de uma tarde de quem sou
eu e de acordar à uma da madrugada ainda em desespero – eis que às três horas
da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre,
plenitude sem fulminação.
Simplesmente eu sou eu. E você é você. É lindo, é vasto, vai durar.”
Simplesmente eu sou eu. E você é você. É lindo, é vasto, vai durar.”
(Clarice Lispector)
Devo me apressar para o que me proponho a fazer. E
isto é derramar-me líquido em tinta sobre o papel. Percebi que ao tentar ser
terceira pessoa ou primeira do plural não estava sendo nem de pouco o que
deveria ser a minha primeira do singular. Falar a ou sobre outros, mesmo que
contido na massa de estranhos, é fundamentalmente diverso de falar de si ou
para si. O máximo de honestidade que se põe não pode nem de longe assegurar que
é pura verdade aquilo que se diz quando um assume a posição de porta voz ao
público. Falar de si, até mesmo, pode ser passível de arrodeios e tangentes,
para não chegar ao inconveniente da verdade em suma. Assim tendo percebido e,
querendo apenas livrar-me de um redemoinho que vez por outra povoa a mente dos
mais inquietos interiormente, fiz, de meta para o já, o pôr em palavras a
bagunça de coisas e poeira que passa levando mais e mais consigo.
Diz-se que, quando algo nos perpassa a imaginação
ou a consciência, devemos nos agarrar à coisa com as todas garras que surgirem
e, igualmente veloz, devemos agarrar a pena, prendendo na folha a tal coisa que
é escorregadia e pode fugir a qualquer momento. Por isso digo que devo me
apressar, pois a coisa já passou o dia quase inteiro indo e vindo, como de
brincadeira. Mas confesso que tenho certos receios e adio por quanto possível
for a prisão (soltura, na verdade) do pensamento. Vou adiando como posso, não
por muito tempo pois é impossível, mas alimentando aquilo com as experiências
do dia. E no momento me pergunto como poderia fugir esse pensamento e não se
mostrar novamente se é em essência parte do eu e do que sou? É por isso que,
mesmo com a pena à mão, vou traçando e tecendo palavras que nem tanto tem a ver
com o objetivo em si.
O que acontece é.
Eu posso estar enganado e é disso que tenho medo.
Posso estar enganado sobre tudo que tem acontecido até então e sobre como devo
prosseguir. Pode ter havido um equívoco e o presente não deveria ser como é e
dessa forma compromete o futuro. São muitas as possibilidades de como tudo poderia
ou poderá ser, sobre os erros e acertos. Mas há algo que não me traz esse
sentimento de ignorância e é sobre isso que tenho pensado. Tenho pensado sobre
mim, mais precisamente sobre o que isso significa. E, embora o processo de
descoberta seja algo constante e sempre em progresso, não posso deixar de
perceber que o que somos, em nosso íntimo, é algo que só pertence a nós e está
presente desde sempre – assim independe de nosso questionamento de como agir,
pois na verdade o guia. O nosso ser, em si, é algo que vamos descobrindo cada
vez mais, de pouco em pouco, mas sempre tendo a certeza de sua legitimidade,
mesmo que em algum momento tentemos pôr sob dúvida. As nossas primeiras pessoas
nos intrigam se lhes dispensamos muita atenção e nos solucionam quando nem
estamos vendo, esses grandes enigmas que somos.
Eu agora devo ser rápido não porque essas linhas
possam me sumir da mente, mas porque tudo acontece mais rápido do que
imaginamos e, enquanto falo sobre devaneios e palavras e pensamentos, as vozes
de quem ouvimos tanto esses dias vão tomando lugares maiores. Me pego escrevendo
algo, enquanto me sussurram alguma música que me agrada e falam sobre alguém
que admiro. Ouço o que agora há pouco ouvia, enquanto adiava esse processo.
Serei claro: ouço Bethânia cantando “É o amor” ou “Sensível demais” ou outras
tantas. Houve muita Bethânia ultimamente por aqui e, mais recentemente, a ouço
recitar “E eis” de Clarice. E eis que estou aqui, imediatamente depois.
(06/04/2015)
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