terça-feira, 14 de junho de 2016

Em meio aos escombros

Encontro-me, hoje, inquieto e não consigo dormir. Me refugio agora nesses papéis na esperança de que me tragam um pouco de tranquilidade, na esperança de que, falando contigo, eu possa esquecer um pouco de tudo que está acontecendo aqui. Desconfio que esquecer ou ignorar tudo isso seja impossível, mas esse é o único recurso que tenho para impedir que isso me corroa mais ainda. A tua lembrança e a ideia de estar contigo, você me ouvindo destilar os meus pensamentos, mostrando-me nu e assustado, vulnerável. Somos todos tão vulneráveis, acredita? Por tanto tempo eu achei que fosse possível - e até uma questão de escolha - nos blindarmos contra as adversidades dessa vida, mas percebo agora que estava apenas me enganando para parecer estar seguro. Percebo que nunca estive a salvo dessas adversidades.
Talvez você não entenda completamente tudo que eu tenho a dizer, nem perceba a importância disso, pois você não está aqui a ver e sentir o que meus olhos veem a contragosto e o que isso me faz sentir. Veja só, espero não te assustar ou te fazer ficar triste. Preciso apenas que você me escute (ou leia, no caso), preciso descarregar tudo isso que na verdade só pesa em mim.
No momento, escrevo sob a luz de uma lamparina daquelas antigas, como saudosos candeeiros, ouvindo o choro dos doentes, das crianças órfãs, das mães enlutadas e o silêncio envergonhado dos que sobrevivem incólumes a essas mazelas, como se fosse crime ou pecado estar são em meio a tantos outros que sofrem. Vez por outra, ouvimos os estrondos de alguma bomba ou de tiros ao longe. Cada pequeno som é aterrorizante, mesmo que distante. Pode ser o anúncio de alguma má notícia para os que esperam aqui.
Somos muitos aqui no refúgio, mas já fomos mais. Como sabes, estou aqui porque acreditavam que eu fosse o mais “apto”, que eu teria mais estômago que qualquer outro para lidar com tudo isso. Me encarregaram da dor, do sofrimento e da morte alheios. Eu também acreditava nisso àquela época e por isso aceitei. Para ser sincero, não sei se outros aguentariam todo esse fardo como até então tenho suportado ou saberiam lidar com ele, mas isso não significa que disso tudo minha alma e minha mente não tenham sido castigadas. Aceitei carregar um fardo que achei ser suportável para mim mais que para os outros. Hoje percebo que não seria leve para ninguém nesse mundo e é por isso que escrevo. Preciso dividir para suportar melhor.
Posso dizer que aqui estou só. Divido o espaço com outras pessoas que também cuidam de outras pessoas, mas não acho que nenhum se sinta da mesma forma que eu. Ainda assim, há algo em comum entre todos nós: o dano. Essa guerra nos provocou danos irreparáveis, de naturezas diversas. Já não sabemos por que morrem os nossos lá fora. Não entendemos mais contra o que lutamos ou o que ganharíamos com um uma vitória. Uma guerra traz sempre mais danos do que qualquer lucro. Agora, só sabemos sobreviver. Outros nem isso sabem mais... preferem o descanso no desconhecido.
Recordo passados momentos, de muito antes de vir parar aqui. Lembro de quando me reunia com amigos e com a família e como eram momentos sublimes. Lembro que em algumas ocasiões discutíamos, tu e eu, sobre outras bobagens e por outras coisas sérias, mas hoje não vejo ali motivo algum para ficarmos tristes como ficamos. Perto do que hoje vejo as pessoas e seus sofreres, me sinto envergonhado do que já achei ter sofrido. Não deveria me sentir assim, pois cada um tem sua vida, suas dores e seus contextos, mas é assim que tudo isso me faz sentir.
Não suporto a impotência diante de tanta calamidade. Aqui eles me veem como uma boa alma, dizem que salvo suas vidas, que conforto seus dias e me agradecem. Eu me vejo como mais um que sofre suas dores acrescidas da necessidade de algo mais. Já não recordo das coisas supérfluas que já julguei necessárias. Necessito do algo mais enquanto ser humano que vive dia-a-dia as faltas, as ausências, o vazio.
Como ia dizendo, os danos são irreparáveis, mas não significa dizer que de tudo nada de bom resulte. Conheci pessoas que hoje já não têm identidade além da que a guerra as tenha dado. Assim também me identifico. Já não sou a mesma pessoa. Não poderia ser o mesmo depois de experimentar a dor e a fome minhas e do próximo, de ter visto a vida escapar entre meus dedos. As guerras mudam as pessoas, inclusive aquelas que travamos dentro de nós mesmos.
Despeço-me aqui. Tentarei dormir embora eu saiba que não conseguirei. De olhos abertos ou fechados verei apenas a imagem que me fez vir em tua busca nessas palavras. Uma criança e o olhar vago de olhos vazios; o olhar perdido de quando há uma vida tentando achar seu caminho. Uma imagem que me fez pensar nos caminhos que não percorri e nos vazios que tento preencher.

(14/06/16) 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Amanhã pode não ser como imaginamos

Quando criança, como a maioria delas, eu gostava muito de brincar e interagir com as outras de idade próxima. Naturalmente eu queria aproveitar ao máximo aqueles momentos e desejava que todos os dias fossem assim, por inteiros. No entanto, como filho único, entre outros fatores, não eram raros os momentos em que eu mesmo e a minha casa eram minhas únicas companhias. Eu não percebia àquela época, mas eu também apreciava esses momentos e fazia deles muito proveito. Já desde infante, descobri certo apego à solidão e ao misterioso conforto que ela pode nos trazer. Eram nesses momentos de pouca distração externa que eu podia me perder dentro das fantasias de um menino com muita imaginação. Era ali também o cenário perfeito para aprender muito sobre o mundo e como ele funcionava. Embora na escola, nas ruas e à televisão eu pudesse observar o mundo, era apenas comigo mesmo e ninguém mais que eu poderia pensar sobre, entender, intrigar-me e imaginar alternativas. Minhas melhores memórias da infância foram propiciadas por esses momentos e muito do que sou hoje, em ideias, deve-se a eles.
Durante esses devaneios infantis, eu dispensava também muito tempo a pensar sobre o futuro. Eram muitos, variados e alguns até ridículos. O futuro que pensou aquele menino pode ser muito diferente do que o destino tratou de realizar. Nem sei se lembro perfeitamente do que eu imaginava, mas foram esses planos que me moveram.
Hoje me pego novamente aproveitando a solidão no meio do caos que o mundo externo insiste em manter e novamente caio no futuro, ou melhor, nas possibilidades de futuro. Recordo de como eu planejei coisas que nunca se realizaram e também como coisas maravilhosas aconteceram sem eu nunca ter imaginado. Penso em como o tempo nos ajuda a entender as coisas e nós mesmos. E quando me vem urgente uma vontade de fugir do cenário comum e rumar ao desconhecido, percebo que não é apenas para me distanciar de problemas ou pessoas, mas sim para encontrar algumas respostas, para encontrar algum sentido oculto, na vida, no caminhar, nos outros e em nós mesmos.
Em meio aos planos que vou traçando e às metas que estabeleço, não me deixo esquecer de como o acaso pode ser um grande amigo e a incerteza, uma das melhores aliadas. Continuo imaginando o amanhã e tentando realizá-lo, mas não dispenso uma mãozinha do destino para me surpreender.

(02/03/2016)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

No olho do furacão

(...)Esperei até chegar em casa, de repente tinha se tornado questão de vida ou morte conseguir aquilo. De vida ou morte era exagero, mas de sanidade ou loucura não. Chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás.
(Caio Fernando Abreu)

Ao entrar no meu quarto, percebo que há uma bagunça bem maior do que de costume. Deito na cama, por cima de todas as roupas que joguei aqui. O teto não está como nas outras noites em que eu o encarava. Algo mudou e foi para pior. O caminho de volta pra casa foi o mais difícil que já peguei, embora seja o mesmo de sempre.  A sensação de estar presente e ausente enquanto dirigia por uma estrada bem familiar, mas que naquele momento era a mais estranha possível. As pessoas sem rostos, as ruas sem luzes e o meu corpo sem eu mesmo. Era essa a sensação. Parecia que caía um pedaço de mim por cada esquina, pois já não me reconhecia. Eu não saberia dizer quem era e a que estava indo. Eu me sentia fragmentado por algo que eu acreditava poder me consertar. As lágrimas que eu deixei cair e que fiz cair de outra pessoa pareciam ter levado uma boa parte de mim com elas. Eu, tentando agora reorganizar os meus pensamentos, percebo que há uma confusão bem maior do que havia. Talvez por isso não reconheço os retratos que eu vejo aqui, por isso o teto parece diferente embora nada o tenha acontecido, por isso essa bagunça que percebo ser a mesma, mas que parece maior. Tudo que eu ouço agora são silêncios e nesses silêncios reconheço vozes que não são de quem eu vejo na minha frente com os lábios em movimento – são vozes e palavras que já ouvi em outro momento e teimam em tomar lugar sem intenção de sair. São sons que fazem doer, como o som de gotas ininterruptamente caindo de uma torneira que não param a despeito de todo esforço. Ao olhar para os rostos que não vejo, vejo apenas rostos que ali não estão.
Afogo-me na confusão do meu quarto que parece imitar minha mente. Vejo no meio de tudo, peças de quebra-cabeças, brinquedos, armas, pessoas, animais, vozes e imagens desconexas. Não consigo encontrar as chaves de casa que acabei de guardar: estou todo assim, sem poder me encontrar na bagunça que eu mesmo criei. No espelho, não sei quem vejo, mas sei que está perdido e andando em círculos para se achar.
Nessa caminhada louca de volta para casa em todos os sentidos, não poderia levar ninguém. É arriscado demais. Não sei de que forma poderia amparar passageiros se nem mesmo consigo encontrar um chão onde pisar. Pode levar um tempo para encontrar o caminho certo e nesse meio tempo, prefiro percorrer sozinho. Vou andando a passos trôpegos... paro alguns instantes, pois há muitas coisas no meio do redemoinho e me causam vertigem. Sigo. E espero não causar mais danos aos outros, pois sempre que isso acontece, me perco mais ainda de mim. Não sou boa companhia no momento. Sigo, com os passos tortos e os pensamentos mais tortos ainda, em direção ao sentido de tudo.

(29/10/15)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Ser para compreender

Há certos momentos em que nós mesmo não nos entendemos. Precisamos nos afastar de tudo e todos e tentar assistir à cena de longe. Mas a vida é um quebra-cabeças complicado e nós somos peça sem a qual não há resolução. Então não podemos simplesmente nos afastar sem provocar algumas consequências e esse é o ponto mais doloroso de tudo isso.
Não adianta querer que outros entendam algo que se passa apenas em você, no seu ponto mais íntimo.  É inútil e angustiante. A sensação é de que você está vivendo uma ilusão, que você complica algo desnecessariamente, quando na verdade, tudo nunca foi tão real e necessário.
É difícil lidar quando outras coisas se fazem necessárias e você tem que se pôr em segundo plano, pois são as exigências da vida em sociedade.
Como no meio de uma história confusa, meio surrealista, meio tragédia grega, até meio clichê, é difícil prever o futuro quando você faz parte dele. Não sabemos que outros personagens surgirão nem quais serão as circunstâncias que se farão presentes.
Ser é um processo difícil e certas vezes frustrantes. Mas não há alternativa. Não ser é um estado imensuravelmente massacrante. Nosso dever, digamos assim, é ir sendo na esperança de haver um propósito, um fim, nem que seja lá no fim.

(28/10/15)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O tempo é que nos rege

Fazer-te algum mal é a última coisa que eu queria. Saiba também que você não me fez mal nenhum. Se você conseguir entender isso, me dou por satisfeito.
O que há de mais nessa história e de complicado é a vida. A vida é assim. Ela prega peças na gente e nós não temos como nos prevenir. Somos pegos de surpresa e geralmente é muito difícil de compreendermos. Mais difícil ainda é tentar fazer outro entender uma realidade que ele não vive. Eu sei bem como é isso.
Eu me pego pensando em tanta coisa. Não consigo escapar da culpa de ter que te fazer sentir mais uma dor para se somar às outras que já aí existem. Se eu pudesse voltar no tempo, ainda não sei bem o que faria, mas tudo seria a fim de evitar qualquer sofrimento a ti. Eu queria ter esse poder. O poder de evitar dor e sofrimento. Mas nós não temos.
Nós não temos muitos poderes que desejamos. Não temos o controle sobre tudo. E, diante do que aprendi, de que para tudo há um sentido e uma razão, me pergunto qual o sentido disso? Por que não podemos controlar tudo? Embora não tenha a resposta exata, posso pensar em muitas hipóteses e uma delas é que sem condições favoráveis e desfavoráveis no meio, não há seleção e, portanto, não há evolução. Você pode se perguntar o que evolução tem em comum com isso e a resposta é absolutamente tudo. Saindo do cientificismo, tudo que passamos na vida tem como objetivo promover mudanças e nos fazer evoluir. A nossa personalidade é um resultado de condições genéticas influenciadas por fatores extrínsecos, como o ambiente, a educação e as nossas experiências. São esses acontecimentos sobre os quais não temos controle que nos fazem quem somos. Sem eles, não somos, apenas existimos.
Se tudo acontece com esse intuito, isso que nos acontece também assim é. Devo acreditar. Quero acreditar.
Para tudo há um momento. O tempo é que nos rege. E, embora eu não consiga aceitar que esse era o momento para tudo isso, posso estar enganado. Talvez o bom momento não exista, mas existe o momento certo. Pode ser que danos sejam inevitáveis, mas possivelmente amenizados.
Eu acredito. Na vida e nos seus propósitos. É isso que me move.
Eu desejo apenas o melhor, nos momentos certos. Paciência e olhos atentos, para vermos a graça de cada coisa a seu tempo.
(27/10/15)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

De canto em canto

Quando eu estiver cantando
Não se aproxime
Quando eu estiver cantando
Fique em silêncio (...)
Porque eu só canto só
E o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação
(Cazuza)

Na maioria das vezes em que estou só, me ponho a cantar cantigas diversas – que variam de acordo com o estado de espírito - ou mesmo algumas melodias inventadas, sem letras ou significado aparente. Isso não significa que eu goste da minha voz, ou que eu acredite que canto bem. Muito pelo contrário – e é por isso que não me arrisco a nem abrir a boca perto de outras pessoas. O caso é que o faço porque encontro na música, como em poucas outras coisas, um lugar em que posso estabelecer uma conexão comigo mesmo, com meus sentimentos, com meu subconsciente e até arrisco em dizer que com outras pessoas. Assim como encontro um refúgio na escrita ou na leitura, encontro um lugar assim na música: na letra e na melodia de algumas canções. Às vezes não basta ouvir, tenho que me expressar através daquelas notas, daquelas palavras. E é impressionante como esse simples ato nos transporta para um lugar longínquo, mesmo sem sair do canto.
Como disse Cazuza, tem gente que canta procurando Deus e eu, como ele, sou assim: com a minha voz desafinada apenas quero me encontrar e gosto de estar só nesse momento tão importante. Assim como no escrever e no pensar. É como se fosse uma prece: tão pessoal, inabalável e urgente.
Nessas horas, apenas aproveito o encontro. Não faço perguntas, nem procuraria respondê-las. O canto em si é vasto e suficiente, é às vezes até demais para suportar. Há canções com as quais nos identificamos a ponto de causar até um certo susto. Há aquelas também que não compreendemos completamente, mas que de alguma forma nos toca. E há também aquelas que nos acerta de uma forma inesperada, como se compostas exatamente para nós. Algumas vezes pode ser doloroso, outras até bem revigorante.
Posso ser contraditório agora, mas algumas vezes é tão urgente a necessidade que até me aventuro em algumas notas perto de outras pessoas, mas sempre na esperança de que não me escutem. Arriscando parecer ridículo, não me abstenho dessa obrigação comigo mesmo.
Agora, ouvindo e cantando, tento me encontrar de diversas formas: nas notas musicais, nas letras que aqui ponho e em algumas imagens que perpassam pela minha mente. De qualquer forma, é válida a tentativa. São experiências que eu não deixaria de sentir por nada, nem mesmo por certos obstáculos que a sociedade e a correria da vida impõem.
                Não há nada mais importante do que estrar presente nesse encontro. Nem que para isso seja necessário cancelar alguns outros. Vale a pena cada segundo, nem que seja por quase um segundo. É necessário. É vital.


(05/10/2015)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

(Des)Construção

“I can barely breathe
When you're here loving me
Fire meet gasoline
I got all I need
When you came after me
Fire meet gasoline
Burn with me tonight”
(Sia)

Pode ser perigoso esse tempo que passamos juntos, pois não parece que somos mais os mesmos. Há algo de bem diferente em mim e não me refiro a qualquer coisa perceptível aos olhos, mas algo mais complicado. Eu também não sei dizer se é benéfico, só sei que é muito estranho perceber que não me conheço tão bem quanto eu pensava e ver que sou capaz de tantas coisas. Acredito que você tem certa culpa em algumas mudanças, outras já penso que apenas dependiam de mim e de uma força que não sei onde encontrei ou onde encontrar novamente. Apenas entenda que o que eu digo não significa que eu não goste do que há ou que não quero que aconteça novamente, apenas me entenda e veja como isso me assusta. Às vezes eu sinto como se houvesse granadas ao meu redor apenas à espera de um momento - a explosão – e o que mais me assusta nisso tudo é essa vontade de correr até elas, de dispará-las todas, como se essa explosão fosse de certa forma necessária. E talvez seja. Talvez precisamos perder tudo aquilo em que acreditamos estar seguros para encontrar nossa própria fortaleza e, nesse mesmo sentido, perder o que somos para então nos encontrarmos de fato. Um disparo. Destruição. O encontro. Não é um simples espalhar de destroços, é algo que leva tempo e nunca para. Apenas esteja aqui, me ajude a juntar as peças e vamos nos construindo.

(28/09/15)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Cais do porto

Hoje eu percebi que minhas âncoras não estão assim tão seguras como eu sempre achei que estivessem. Me apoio no que eu acreditava ser uma fortaleza própria, algo que eu mesmo havia criado. Percebi que as estruturas de um ser humano são, na verdade, mais frágeis do que se pode imaginar.
Às vezes ocorrem maremotos e tempestades que me fazem querer me livrar dessas âncoras e, como esse mar que me rodeia, transbordar. Às vezes, todo esse caos surge como algo que implode de mim e não de uma força externa, como era de se esperar. Fico me sentindo estranho, pois acho que os outros têm portos muito mais seguros.
Muitas vezes, o que eu acabo fazendo é me entregar ao silêncio de um mar calmo, que não é deveras calmo e se aproxima mais de uma maré noturna em lua cheia. É aquele silêncio que te arrasta para dentro de si enquanto observas o horizonte tornando-se distante.
Marinheiros que tentam navegar, tomem cuidado com as trapaças do mar. Estas são águas salgadas de suor e lágrimas de quem as navega.
Hoje percebi que todas essas âncoras são, na verdade, inúteis se não há algo em que possam se sustentar e apenas o solo que criei, por não ser tão firme, não é suficiente.
Quando você esteve aqui e fitou demoradamente essa água que nem é tão cristalina, observando seu rosto balançar às ondas desse mar, pude ver uns olhos densos. São olhos densos daqueles que fazem parar a correnteza por alguns segundos, que silenciam o caos por um momento. São castanhos e sólidos, como terra firme para se ancorar. Tive vontade de falar muitas coisas, mas poderia fazer desabar as estruturas de um cais de porto assim tão seguro. Eu poderia assim produzir um tsunami que te engoliria e te faria se perder nas minhas confusões. Preferi então manter o silêncio de uma maré alta, que sussurra palavras fortes, mas que não perturba. Permiti-me ancorar no teu porto.
Se mar, marinheiro ou embarcação, não estou certo de quem verdadeiramente sou. Mas sei que estou seguro nas minhas próprias instabilidades. E nas tuas.

(14/09/15)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Apenas desencontros casuais

É bem possível que você nem saiba meu nome, muito menos outras coisas sobre mim. Sou aquele completo estranho que a gente vê de vez em quando. Eu, no entanto, já sei muito da tua rotina, sei bem os teus traços – caso precise descrevê-los, sou a pessoa mais indicada. O teu nome, não foi bem a primeira coisa que eu soube sobre você, aliás, veio muito depois das primeiras palavras trocadas e muitas unhas roídas de curiosidade querendo saber tudo sobre quem vi algumas vezes. Antes disso eu já soube: queria saber muito mais. Espero ter passado despercebida todas as vezes que vigiava a tua janela antes mesmo da minha ao chegar em casa, ou quando olhava para os vários lados na esperança de te ver ali no meio do caminho, trocar um “bom dia” casual enquanto meu coração triplicava o movimento de suas baquetas. Eu realmente não consigo entender, e não espero que os outros entendam, como alguém que mal conhecemos pode causar tão dramático efeito em como vivemos. Posso parecer apenas mais um rosto no mosaico dos tantos que você vê por aí, mas para mim o seu representa mais do que qualquer um, sem nem mesmo ter motivo especial para tal. A tua figura, sem particularidades, é singular. Enquanto, pra você, meu nome é Estranha, eu já te dei muitos nomes além daquele que você conhece. São nomes que eu chamo quando estou só, imaginando que estás bem ali a alguns passos de mim. Sem saber bem ao certo os detalhes da tua vida, conheço os horários em que posso ouvir tua voz ao longe conversando com seus amigos enquanto sai de casa para o trabalho ou algo do tipo. Sei quando posso, propositalmente fazer a coincidência de te encontrar chegando em casa ao mesmo tempo que eu, parecendo surpresa por te encontrar ali, dizendo “boa tarde” mas querendo saber como vai, por onde tem andado e quais seus mais íntimos pensamentos agora, mas ao mesmo tempo suando, querendo correr e ficar. Não sei se você me acha uma pessoa de poucas palavras, pois tudo que falamos um pro outro são saudações convencionais, mas a verdade é que eu tenho todo um texto em mente que eu construo nas horas em que deveria estar pensando em qualquer outra coisa, mas as palavras se perdem antes mesmo de surgirem. Eu pouco sei da tua personalidade – além daquela que criei pra você, é claro – mas imagino que não conheço uma das melhores pessoas que poderia conhecer. São poucos, e você aí está, aqueles cuja ausência me perturba. Fico imaginando mil coisas quando te vejo e outras milhões quando você some. Quando você aparece novamente, toda essa ansiedade vai e dá lugar a outra, velha conhecida, querendo e não querendo te ver. Torço pra que você esteja no meu caminho e rezo para que nem te veja quando acho que não estou apresentável.  Quando você sai ou chega fico querendo saber quais são seus descaminhos e querendo me perder neles com você. O tempo que deveria dedicar às outras mil coisas que estavam na minha vida antes de você é, hoje, todo seu. As palavras que deveria estar agora dizendo a você, enquanto nos encontramos casualmente como nas outras muitas vezes, depois do oi e do sorriso tímido, estou derramando agora sobre esse papel. E esse papel, que eu poderia te entregar em mãos na mais remota possibilidade, é mais provável de acabar amassado na lixeira. As nossas conversas que já aconteceram tanto na minha cabeça, talvez nem aconteçam. Enquanto a coragem se perde no meio do caminho, vou tentando encontrá-la mesmo assim e espero que nesse meio tempo possa te encontrar muitas outras vezes.

(15/04/15)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Imediatamente aqui

“E eis que depois de uma tarde de quem sou eu e de acordar à uma da madrugada ainda em desespero – eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. 
Simplesmente eu sou eu. E você é você. É lindo, é vasto, vai durar.”
(Clarice Lispector)

Devo me apressar para o que me proponho a fazer. E isto é derramar-me líquido em tinta sobre o papel. Percebi que ao tentar ser terceira pessoa ou primeira do plural não estava sendo nem de pouco o que deveria ser a minha primeira do singular. Falar a ou sobre outros, mesmo que contido na massa de estranhos, é fundamentalmente diverso de falar de si ou para si. O máximo de honestidade que se põe não pode nem de longe assegurar que é pura verdade aquilo que se diz quando um assume a posição de porta voz ao público. Falar de si, até mesmo, pode ser passível de arrodeios e tangentes, para não chegar ao inconveniente da verdade em suma. Assim tendo percebido e, querendo apenas livrar-me de um redemoinho que vez por outra povoa a mente dos mais inquietos interiormente, fiz, de meta para o já, o pôr em palavras a bagunça de coisas e poeira que passa levando mais e mais consigo.
Diz-se que, quando algo nos perpassa a imaginação ou a consciência, devemos nos agarrar à coisa com as todas garras que surgirem e, igualmente veloz, devemos agarrar a pena, prendendo na folha a tal coisa que é escorregadia e pode fugir a qualquer momento. Por isso digo que devo me apressar, pois a coisa já passou o dia quase inteiro indo e vindo, como de brincadeira. Mas confesso que tenho certos receios e adio por quanto possível for a prisão (soltura, na verdade) do pensamento. Vou adiando como posso, não por muito tempo pois é impossível, mas alimentando aquilo com as experiências do dia. E no momento me pergunto como poderia fugir esse pensamento e não se mostrar novamente se é em essência parte do eu e do que sou? É por isso que, mesmo com a pena à mão, vou traçando e tecendo palavras que nem tanto tem a ver com o objetivo em si.
O que acontece é.
Eu posso estar enganado e é disso que tenho medo. Posso estar enganado sobre tudo que tem acontecido até então e sobre como devo prosseguir. Pode ter havido um equívoco e o presente não deveria ser como é e dessa forma compromete o futuro. São muitas as possibilidades de como tudo poderia ou poderá ser, sobre os erros e acertos. Mas há algo que não me traz esse sentimento de ignorância e é sobre isso que tenho pensado. Tenho pensado sobre mim, mais precisamente sobre o que isso significa. E, embora o processo de descoberta seja algo constante e sempre em progresso, não posso deixar de perceber que o que somos, em nosso íntimo, é algo que só pertence a nós e está presente desde sempre – assim independe de nosso questionamento de como agir, pois na verdade o guia. O nosso ser, em si, é algo que vamos descobrindo cada vez mais, de pouco em pouco, mas sempre tendo a certeza de sua legitimidade, mesmo que em algum momento tentemos pôr sob dúvida. As nossas primeiras pessoas nos intrigam se lhes dispensamos muita atenção e nos solucionam quando nem estamos vendo, esses grandes enigmas que somos.
Eu agora devo ser rápido não porque essas linhas possam me sumir da mente, mas porque tudo acontece mais rápido do que imaginamos e, enquanto falo sobre devaneios e palavras e pensamentos, as vozes de quem ouvimos tanto esses dias vão tomando lugares maiores. Me pego escrevendo algo, enquanto me sussurram alguma música que me agrada e falam sobre alguém que admiro. Ouço o que agora há pouco ouvia, enquanto adiava esse processo. Serei claro: ouço Bethânia cantando “É o amor” ou “Sensível demais” ou outras tantas. Houve muita Bethânia ultimamente por aqui e, mais recentemente, a ouço recitar “E eis” de Clarice. E eis que estou aqui, imediatamente depois.

(06/04/2015)