segunda-feira, 30 de março de 2015

O rumo entre o querer e o fazer

Eu queria encontrar o caminho que leva para aquilo que a gente busca. E aquilo consegue ser uma palavra tão genérica a ponto de satisfazer em cheio, como só ela mesma poderia, a figura de um mundão de coisas que a gente quer. Uns querem pouquinho. Há os que querem um pouquinho disso aqui e daquilo lá. Outros querem tanto mais do que podem abarcar – e vão acabar percebendo, cedo ou tarde. Eu queria encontrar o caminho pra tudo isso e que fôssemos todos na busca “do aquilo”. Mas a verdade é que por mais que desejemos com toda nossa vontade achar o caminho – como se fosse algo que sempre esteve nas nossas mãos e eventualmente o deixamos cair por aí, por mais que isso seja nossa ideia da coisa e o alvo de todo nosso empenho, assim não será. Assim simplesmente. Pois os caminhos são coisas que devemos construir, como fez a humanidade durante boa parte da sua história: abrindo veredas na mata fechada, seguindo persistente no vazio do deserto e fazendo possível o impossível de atravessar os mares e os ares. Assim devemos fazer. E o que é essa fé na sorte e no milagre do nada fazer deve ser agora fé motriz de encontrar aquilo que não se perdeu, assim sendo, criando o que ainda não temos e abrindo as estradas no sentido que a vida deve seguir.

(30/03/2015)

sábado, 14 de março de 2015

Acima de tudo, viva

No dia nacional da poesia, me deparo com um dos mais belos poemas que já li, recitado por uma das maiores atrizes de todos os tempos. Que mais belo presente poderíamos receber?

"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar."
Antonio Cícero - Guardar


Ainda assim, me aventurei em tentar rabiscar algo para esse dia. Nada pretensioso, apenas um agrado poético:

Acima de tudo, viva
A poesia está em tudo que vemos. E, sobretudo, no que não conseguimos ver. A poesia vive em cada um e em cada coisa e é preciso senti-la para, então, entender. É onipresente. Está no sorriso da menina que acaba de ganhar um presente, no beijo daquele casal apaixonado, na euforia daquele que venceu a partida de futebol, nas lágrimas da mãe ao ver seu rebento pela primeira vez e no choro sem lágrima desse pequeno que sente o primeiro sopro. Está na brisa que sopra calmamente os cabelos de quem passeia no jardim, no som das ondas do mar chegando aos ouvidos de quem contempla o pôr-do-sol. Está nos primeiros raios da manhã e no orvalho da noite. A poesia está em cada canto. Na dor de quem se despede, nas lágrimas de quem perde alguém, nos insultos que varrem a angústia de duas vidas. Está no último suspiro de quem já viveu muita poesia. Está nas primeiras palavras de quem ainda muito vai viver. Está nos tropeços dos passos cansados e na graça dos primeiros tropeços. Está na boa notícia, no pedido de casamento, nas mudanças de vida, nos ensinamentos. Está no pó de giz que habita a sala de aula e está no que se aprendeu fora dela. Está em cada tijolo colado com cimento e suor. Está na plantação e na colheita. Está no acre da seca e na gratidão por cada gotinha de chuva. Está na poça de lama que se forma de manhã, nos pés sujos dessa mesma lama e na água que os lava. Está nas folhas que caem de tempos em tempos, nos frutos que se preparam pra surgir e alimentar os famintos. Está nas flores, em cada pétala e em cada grão de pólen. Está nas pedras que desafiam o rio e na água que faz seu destino. Está nos caminhos que muitos já percorreram e nas veredas que uns inventam. Está na tinta que molha a pena e nos segredos que ali se libertam. A poesia está em tantos lugares inimagináveis e que nem conhecemos ainda. Está na própria vida e é preciso vivê-la. É tudo e ao mesmo tempo o nada. A poesia... está principalmente no silêncio das palavras.

(14 de Março de 2015, Dia Nacional da Poesia)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Nós somos o que não sabemos

Você sou eu e eu sou tudo isso que não sei dizer. E você sabe bem o que eu quero dizer, pois foi tu quem mais viste o nada que digo quando tento falar. Você é testemunha das inúmeras e fatídicas tentativas de pôr em palavras. Você sabe. Você sou eu e esse medo todo que você tem, de se perder em mim e não se ver nos outros, é o mesmo medo que eu tenho. É algo que sempre senti e piorou depois de ti. É verdade que eu continuo falando de ti como algo ruim que me aconteceu, mas a verdade mesmo é que, para bem ou mal, você me aconteceu. E não foi você, nem o mundo, mas eu mesmo que percebi tudo isso sobre mim e acima de tudo, que preciso me conhecer melhor. Você me aconteceu e me viu assim, um pouco simples quando visto de longe. Mas você se aproximou e percebeu, talvez antes de mim, a confusão que eu sou e, apesar de muito trabalho, ainda não consegui entender essa bagunça. Ainda há peças fora do lugar, há coisas faltando, outras que nem sei pra que servem. Estou assim, como me viste um dia e me vês ainda hoje. Já conversamos muito. Na verdade, tu falavas e eu só ouvia, como de costume. Enquanto você discorria sobre seja lá o que tenha sido, eu estava ali mas em outro lugar. Eu te ouvia, mas o que eu realmente ouvia era a minha voz e não entendia bem o que eu dizia: eram muitas perguntas, poucas respostas, alguns sussurros, assobios, músicas, cenas... O que acontecia realmente enquanto tu falavas e eu fingia que ouvia era eu tentando entender. A mim, a ti, a nós, ao mundo. Não te aborreças. É, eu sei: no fundo você sempre soube que eu estava mais pra lá do que pra cá, pra tuas histórias. Não que elas não fossem interessantes, nem que você não fosse importante para eu parar minha cabeça um minuto e apenas te ouvir. Mas era mais forte do que eu. É mais forte do que nós mesmos, você sabe. E no fim, de que adiantou? Pois continuo sem respostas, com novas perguntas e agora, sem você. Você acha que eu tentei mudar por você ou que fiz você mudar por mim. Você acha que eu queria demais, eu sei. Mas preciso te dizer que não. Eu não tentei mudar por você nem nunca quis que você mudasse. Na verdade, não houve mudança nenhuma, eu nunca quis. Eu nunca quis demais, só quis o que é nosso. Se eu mudei, foi de algo que não era eu para algo que ainda não sou eu mas quer que eu viva. Você sabe, pois você sou eu e eu sou você e todas essas perguntas sem repostas. Você sou eu e nós somos o que sempre fomos, mas nem sempre deixamos ser. Eu aqui, você lá, mas de qualquer forma, sendo. Eu me ouvindo, tentando ouvir as repostas.

(09/03/2015)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Como se fosse ontem

Lembro muito de você. Não como eu gostaria de lembrar: às vezes tenho que me esforçar para formar um esboço do seu rosto; a sua voz sofreu alguma distorção nesses últimos tempos e não lembro exatamente sua altura. Lembro dos seus óculos – na verdade, lembro que você os usava, mas não tenho certeza de como era o modelo. Sei que caía muito bem no seu rosto que pra mim, hoje, é um pouco borrado. Tenho certeza que mudaste nesses anos e, por isso, fica mais difícil ainda formar um modelo seu para recordar. Agora na vida adulta, será que mudaste muito mesmo? Há tanto tempo não te vejo. Lembro – mal, mas lembro, que conversávamos muito e, embora eu não consiga mais reproduzir mentalmente a tua risada, sei que adorava ouvi-la: era pura espontaneidade, uma risada torta, engraçada e adorável (acho que só eu achava adorável) e não combinava nada contigo, mas pra mim, não havia melhor. Nos corredores da minha memória, o teu retrato encontra-se repetido em vários locais, são retratos distintos e, apesar de não serem merecedores de muitos elogios, foram feitos à mão, com pouca técnica e muito bem-querer. Não lembro da tua forma, do teu rosto, da tua voz. Mas lembro perfeitamente de como me alegrava em te ver, mesmo de longe, e ao perceber que também se alegrava ao me ver, com um sorriso se formando nos teus lábios, enquanto que o meu já nem cabia mais no rosto. Às vezes me fazia de indiferente, confesso, mas é porque eu tinha essa coisa de querer me proteger dos outros. Sei que você não me entende, pois nem eu bem me entendo, muitas vezes. Lembro com precisão do arrepio que eu sentia quando a distância já não era tão grande, com o toque da tua pele (que já nem sei como era) na minha. Lembro de rir à beça com as tuas piadas e até com a sua conversa séria. Lembro que falávamos sobre tudo, tudo mesmo e era tão simples. Eu particularmente adorava te aborrecer rindo da sua cara. Lembro o quanto eu odiava me despedir de você, mesmo que fosse com um “até amanhã”, mas nunca te disse isso. Lembro de fazer muitos planos para o dia seguinte e não realizar nenhum. Lembro das vezes que, depois de um tempo, mal nos falávamos, sem motivo algum, apenas uma distância que se criou. E nessas vezes, lembro do breve oi que te dirigia com a intenção de dizer muito mais, mas que nunca passou disso. E aí, os meus sorrisos já nem tinham tanto a ver contigo, pois você não estava sempre lá. E quando eu te via de longe, eu já nem sorria, só pensava no pouco tempo que é necessário para separar as pessoas, e via que você sorria mas isso nada tinha a ver comigo. As raras vezes em que conversávamos como antes, não eram na verdade como antes, mas serviam pra manter aquela chama acesa (que se enfraquecia na maior parte do tempo). Nesse tempo todo conversamos sobre tanta coisa, ouvi muito e falei tanto, mas não te disse nada do que eu realmente queria dizer. Talvez fosse melhor assim. Até as redes sociais, da internet, que costumávamos usar e era o que nos salvava, sumiram. Quando o cenário que dividíamos se desfez, lembro que nem houve despedida. A última vez que conversamos, já depois disso, foi tão rápida e nem lembro bem o que falamos, nem a tua reação. Também não houve despedida. Depois disso, já te vi outras vezes, de longe e, a contragosto, fingi que não vi. Desviei. Minha vontade era de te falar todo aquele não dito, que à época já era maior e hoje muito mais. Eu queria ouvir novamente a tua voz, sentir a textura da sua pele, ver as mudanças no seu rosto e, com sorte, testemunhar aquela sua risada estranhamente perfeita. Eu queria te contar tudo que eu vivi desde então e queria também ouvir o que aconteceu na sua vida e todos os detalhes possíveis. Eu queria mesmo era te dizer tudo isso que eu estou dizendo, achando que é pra você, mas que talvez você nunca leia. O que eu realmente queria te dizer, além disso tudo, é que depois de você, conheci muita gente e já há outros novos retratos na parede, mas eu nunca me esqueci de você. Como eu já disse: eu me lembro de você, não como eu gostaria, mas de um jeito muito melhor.

(04/03/2015)