Confissões
do leitor: “Grande Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa
No meio do caminho tinha um Rosa.
“Mire veja”: são inúmeras as veredas que
surgem nas 752 páginas desta obra. O sertão: tão familiar, tão estranho. O
sertanejo: nós todos, cada um, reconhecível.
"O senhor por ora mal me entende, se é
que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível". E não é mesmo,
Guima. Esse livro me espantou de cara: pela expectativa, pelas primeiras
palavras, não tão entendível de cara. Mas assim como é a vida: vai clareando
aos poucos e, quando vê: está tudo enfim descoberto. "Digo: o real não está na
saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia".
Foram anos de
expectativa: à primeira vez que parei para ouvir sobre Guimarães, sua obra (em
especial, essa), já há muito havia me aventurado no vasto mundo da literatura. Mas
nunca em tão densa coisa. Ensino médio, aula de literatura. Eveline, professora
da disciplina, no meio do contar de toda a vida e obra deste homem que
brincamos de chamar Mestre Guima, diz: Guimarães é, pra muita gente: ame ou
odeie. Parafraseando no que a memória permite. Susto já principiou daí. Contos:
foram a forma com que ela nos apresentou a ele. Não falo pela maioria: mas
efeito pra lá de bom isso me ocorreu. “A terceira margem do rio” já gravada na
parede da nossa memória pra sempre desde aquelas aulas, nunca esquecemos. Quis
logo mais. Porém, não perseverei, fui adiando... Klyvia, uma amiga dentro desse
mesmo contexto, tempos depois me recomendou seu livro de contos “Primeiras
estórias” e, depois de ler, aí quis muito mais! Com muita curiosidade fui
caminhando. Depois de ler o grande “Grande Sertão: Veredas” a tal amiga só faltou
morrer de amores e queria que eu também padecesse do mesmo “mal”. Curiosidade,
vontade corroendo. Enfim, (tempo passando), adquiri. Não li logo. Havia uma
fila. Em 2012 foi que primeiro li as primeiras páginas. Faculdade no auge,
provas e mais. A leitura não fluía como esperado. Pronto eu não estava. Parei a
contragosto.
Em 2014,
agora, é que recomecei. E terminei. Leitura assim tão prazerosa há muito tempo
não tinha. Confesso: trabalhoso, árduo, desafiador. Mas, acima de tudo, engrandecedor.
Na travessia
por essas veredas sertanejas muita coisa aprendi, descobri. Conselho pra vida toda,
verdade sobre o tudo: tem de sobra.
O livro se constrói
em um cenário: o sertão, sertões, Brasil, o mundo. Com um personagem: o homem.
Assim genérico. Regional, universal. A linguagem não é portuguesa, nem
brasileira: é Rosiana. Poesia salta de palavra em palavra, até em quase-palavra.
A alma da gente tá toda ali:
Todos nós
merecemos é liberdade do pensar. A dúvida deve sempre é estar plantada.
Aprender sempre. "O senhor saiba: eu
toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu
mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu
quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo,
eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma
ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” Homem
simples sertanejo muitas vezes sabe disso muito antes de homem letrado. "Sou um homem ignorante. Gosto de ser.
Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas
águas, a lume de lua..."
E que a alma
da gente, o nosso ser per si, é não
estático, sempre se construindo: “Mire
veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior."
Vivemos como
parte do todo. Cada um sendo muito do importante. Da unidade depende todo o total.
Fazer sempre o que ao seu alcance estiver, o que sempre puder, assim é que deve
ser: “a colheita é comum, mas o capinar é
sozinho...”. E nesse capinar, ter sempre o reto como exemplo de proceder,
sem certeza mas crendo que é isso mesmo. "O
mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um
saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra".
Decidir e ir. O que acontece no meio são outras estórias... Às vezes um mau
proceder pode acontecer. Aprender com o erro é o que importa.
Ah, sobre o
amor: Infinitudes... "Coração cresce
de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas,
matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe”. E mais: “O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.”
E as ânsias desse sentimento: "Para
ódio e amor que dói, amanhã não é consolo."
Ter sempre o
companheiro de viagem, muito importante. Aquele que com apreço se faz presente,
sem muito querer. "Amigo, para mim,
é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual,
desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos
sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por
quê é que é”.
"Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente
volta!” Das pedras no meio do caminho esse está cheio. Transpassá-las
devemos e aí dar de cara com o mais belo campão de flor. "Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si;
mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero." Vida é
isso, toda uma caixa de surpresa: “pois,
no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um dia é todo
para a esperança, o seguinte para a desconsolação.” Astúcia deve-se ter
sempre pra perceber. “O que meus olhos
não estão vendo hoje, pode ser o que vou ter de sofrer no dia depoisd’amanhã”.
"Passarinho que se debruça: o voo já
está pronto!" Liberdade, ah. "Tem
uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina:
o beco para a liberdade se fazer."
Beleza
em palavra pra uma vida toda dá pra encontrar por lá, nesse rio de letras. E do
sertão? Sertão é em todo canto: o mundo e nós somos ele. “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – ... ele tira ou dá,
ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.” Disse ainda mais:
"Sertão: é dentro da gente."
Sertão, ou seja, o mundo surpreende até não poder mais. Faz parte da gente: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás,
mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se
espera; digo".
Que
viver é o eterno aprender, foi o que mais soube: "Vivendo, se aprende; mas o
que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas". E
quando achares que nada há mais pra saber, prepara-te pra mais. "Mestre não é quem sempre ensina, mas
quem de repente aprende."
"O senhor pense, o senhor ache. O
senhor ponha enredo."
"Eu conto; o senhor me ponha ponto”.
Tagarelar o resto dos dias todos sobre tudo isso dá facílimo. Vou tentando
suspender conversa tão comprida.
Guimarães
me abriu universo de sonhar. Com o novo. Pois, se até uma língua foi toda
reinventada pra uso de contar história, por que não tudo? Língua nova, mas que
todo mundo fala. "Ah, vai vir um
tempo, em que não se usa mais matar gente..." Ah, tempo bom vai ser.
Ponto
final é em algum momento ponto de partida. A declaração: uma vida pré e uma
vida pós esse livro.
"Tudo
o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num
cômpito".
(24/08/2014)